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30.8.05


O Guri Monstro

Numa manhã de 1980, lá foi o guri, faceiro, pro colégio, de carona com seu pai. Nem tinha chegado ainda e já estava ansioso pelo recreio, período mais valorizado pela horda pré-adolescente que estudava no Colégio Sevigné. Era uma escola antiga, de 1900, grande e com algumas áreas abandonadas. Tudo meio escuro e úmido, cenário perfeito pra despertar a nossa curiosidade. A missão daquele dia era explorar um certo pátio desconhecido que estava provocativamente fechado. Como a construção do Sevigné era muito vertical, havia pátios cobertos. Descendo algumas escadas, era fácil chegar ao primeiro deles, o Pátio dos Onze. Um grande retângulo com duas goleiras onde a gente jogava bola, na maioria das vezes. Não sei o porquê desse nome, só sei que o nosso destino se chamava Pátio dos Vinte e ficava logo abaixo dele. Separando o nosso mundo desse lugar mítico, um tapume de madeira fechava o acesso aos degraus para o piso inferior. Nem bem toca o sinal para o recreio e o guri sai correndo, com mais 3 colegas. Quanto menos tempo perdessemos, melhor. A merenda foi comida com avidez, grandes goles de guaraná colaboraram pra isso. Tanta pressa e euforia não podia dar 100% certo (Murphy já tinha um esboço das suas leis naquela época). Uma garrafa se espatifa no chão. Os quatro se olham. Limpa, limpa, rápido, merda. Tava quase limpo quando um teve a brilhante idéia de jogar um caco no poço de ventilação que tinha lá no canto. Errou. Outro tenta e não consegue. O guri, sempre ele, pega outro pedaço da garrafa e se prepara. Ele tinha boa mira. Capricha no arremesso e na força pra alcançar o alvo e "ai". "Ai"? Algo trava o lançamento. Mais precisamente uma mão. O guri nem sabia direito o que tava acontecendo, mas o Luiz Felipe já tinha um corte profundo na mão esquerda, resultado da boa mira do guri. Pânico, grita, chora, corre, chama a professora, chora mais, leva pra enfermaria e vai para no hospital. Depois de um tempo ele volta, já ostentando um curativo e orgulhoso de ter tomando bem mais que meia-dúzia de pontos. Pra completar, era um dia festivo. Depois da aula os pais viriam pra confraternizar com seus filhos. O pai do guri chega esperando um clima alegre e encontra um silêncio típico de velório. Uma mãe percebe e provavelmente comenta com outras alguma coisa como "lá vem o pai do monstro". Rapidamente ele fica sabendo o que aconteceu e vai em direção ao culpado, senta e conversa. Mas sem repreender muito o guri, que tava há um tempão num cantinho, misturando culpa com lágrimas. Anos se passaram, a ferida fechou e ninguém ficou sabendo o que tinha realmente lá embaixo, saco. Posso dizer que este dia marcou a nossa amizade. Aliás, a enorme cicatriz na mão esquerda dele que o diga.

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